Cor(rosões)
Ano:2014
Eleger a pintura no século 21 como principal linguagem requer ao artista contemporâneo coragem, pela envergadura histórica do meio, e, ao mesmo tempo, faz com que a pluralidade do circuito aceite bem tal escolha. O paulista Gabriel Nehemy pensa pictoricamente, mesmo que às vezes utilize a fotografia, o desenho e o tridimensional. O fazer poético também se aproxima da colagem, e, por isso, o bric a brac resultante do embate rotineiro e diário com os quadros, os chassis, os tubos etc, ganha uma configuração fluida, em que o caos parece, ao mesmo tempo, um eixo e um catalisador.
Como exemplo, podemos selecionar série sem título de 2014 em que Nehemy utiliza o papel fotográfico de algodão como superfície de experimentos. Sobre eles, o artista derrama, espalha, risca, interfere de variadas maneiras. Surgem garatujas, formas incompletas, grafismos, drippings e corrimentos, composições pouco regradas que abrem destacado território para o acidental. O âmbito fotográfico do material parece ter mais a ver com as características de textura, que salienta o tom aveludado e dá profundidade à cor, do que com a reprodutibilidade e a captação automática desse suporte. O pictórico, assim, dá as cartas e verte para a superfície fotográfica dados outros, como a fatura e a lida com o espaço de maneira mais demarcada.
E o caos criador e fecundo, a guiar e a permear diversas linhas dentro da pesquisa visual de Nehemy, chega a dar título a algumas de suas obras. Nelas, o papel abriga mais testes plástico-matéricos por meio dessa técnica mista do autor, que trabalha nas encruzilhadas entre o grid geométrico de fundo, da linha, e a informalidade, os volumes que parecem flutuar num limbo entre o abstrato e o figurativo. Nesse ponto, cabe ressaltar que a produção do artista paulista consegue dialogar com os pressupostos desenvolvidos e sedimentados pela Geração 80, por exemplo, quando eles se referiam ao “prazer de pintar” e até a “euforia da influência”, termo criado pela brilhante visada de Nuno Ramos, um dos expoentes daqueles anos, sobre a obra ainda inquietante de Jorge Guinle.
Além do papel fotográfico, outra superfície menos usual escolhida por Nehemy é a lona. Sobre ela, o artista continua na sua empreitada cotidiana, um tipo de combate frequente e que se aprimora cada vez mais com o manejo do material, em consonância com as influências conceituais da produção, em especial as mais corriqueiras _ exposições vistas, leituras, indagações de caminhos poéticos, diálogos com outros artistas. “A pintura é a um só tempo a frontalidade, a fronteira, o confronto: o ato e a máquina de guerra que a delimitam e a dissolvem, que defendem territórios e expandem impérios (…)”1, analisa, com brilhantismo, a crítica Marisa Flórido Cesar a respeito da obra de Hugo Houayek. Assim, pinturas como Aviator (2013), Óxidos 1 (2014) e Red and Rusty (2014) ostentam um tom de corrosão maior, em especial pela utilização de um azul que se assemelha aquele visto em monumentos mundo afora, quando o metal, exposto às intempéries climáticas, ganha uma configuração mais esgarçada, menos íntegra.
A produção de Nehemy consegue, então, extrair as potencialidades do campo pictórico, mesmo que usando outros meios. Será interessante em sua trajetória, portanto, ele revisitar, por exemplo, o desenho, quando ele produziu bons trabalhos com acrílica e pastel oleoso sobre papel, em 2008, ou quando ele partir para uma hipotética intervenção espacial, num território de pintura expandida. Torçamos.
Mario Gioia, dezembro de 2014
Graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), coordena pelo quarto ano o projeto Zip'Up, na Zipper Galeria, destinado à exibição de novos artistas e projetos inéditos de curadoria. Em 2013, assinou por tal projeto as curadorias das individuais de Ivan Grilo, Layla Motta, Vítor Mizael, Myriam Zini e Camila Soato. No mesmo ano, fez as curadorias da coletiva Ao Sul, Paisagens (Bolsa de Arte de Porto Alegre) e das intervenções/ocupações de Rodolpho Parigi e Vanderlei Lopes na praça Victor Civita/Museu da Sustentabilidade, em SP. Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como a revista Select. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora), Memória Virtual - Geraldo Marcolini (Editora Apicuri) e Bettina Vaz Guimarães (Dardo Editorial, ESP). Faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes, instituição na qual fez o acompanhamento crítico de Black Market (2012), de Paulo Almeida, e A Riscar (2011), de Daniela Seixas. É crítico convidado do Programa de Fotografia 2012/2013 e do Programa de Exposições 2014 do CCSP (Centro Cultural São Paulo).
1. HOUAYEK, Hugo. A Pintura como Ato de Fronteira. Rio de Janeiro, Apicuri, 2011, p. 13